domingo, 19 de abril de 2020

O discurso da ética e a ética do discurso



      Está na hora de a gente voltar a pensar sobre ética, responsabilidade, compromisso, as nossas identidades, como a gente se define, quem a gente diz que é...
      Eticamente nos cobram o compromisso  de  um país guerreiro, um país que quer atropelar os outros, que quer pela força obrigar os outros a fazer aquilo que nós queremos, ou  que os grandes do mundo querem.
      Temos um país que se parece com o primeiro mundo, e há um país que se parece com o último do mundo.
      Eticamente todos nós queremos levar vantagem. Não uma vantagem aleatória, fortuita. É uma vantagem sobre alguém. Nos comportamos como vira-latas. A gente não tem uma postura boa  diante do mundo. Nos comportamos como se fôssemos de segunda categoria.
      Ainda há os que dizem " eu  sou mais eu". Na comparação com os outros. Quase sempre se desvaloriza os outros.
      Para falar de ética é importante caminhar pela filosofia.  Filosofia não é apenas uma teoria. Ela faz parte da nossa vida, ela vaza aquilo que a gente é.
      Há outra lei circulando: " até perdendo a gente ganha". A gente troca comportamentos, convicções, aquilo que a gente é, por uma vida melhor.
      Se o que penso sobre ética tem que ser uma regra e tem que servir para todos, instaura-se então a lei do dever ser. Temos que agir daquele jeito, um imperativo que é maior do que a gente. No decorrer da existência isso não é viável a vida individual de cada um.
      Como podemos navegar numa perspectiva mais universal, e numa perspectiva de ato singular na vida individual de cada pessoa? Bakhtin envereda por três caminhos para discutir ética, segundo seu texto " Para uma filosofia do ato responsável". O primeiro é pensar ética como filosofia moral. É pensar a dimensão moral da vida, um jeito de ser; o éthos diz que eu sou, quais são os compromissos que eu tenho, quais são as responsabilidades que assumo,  como eu vejo responsavelmente, como respondo à vida. A segunda a ética como uma questão de linguagem. Se a gente quiser pensar a vida, a filosofia, a moral, a ciência... é preciso do pensamento. Você tem que pensar, assim instaura-se um sujeito, um sujeito que se constitui a si próprio. Chegou-se ao exagero da racionalidade, como se meu pensamento conseguisse constituir a própria realidade do mundo. Segundo Descartes " Eu penso, logo existo!". Segundo Álvaro Vieira Pinto, numa perspectiva marxista "Eu sou pensado e eu penso, logo existo". A constituição da própria identidade deve vir pela alteridade. Nós somos pensados e não apenas pensamos. Bakhtin instaura não pensar em constituir a própria identidade, mas pensar como lugar da responsabilidade social.  Segundo Bakhtin quando eu respondo, não respondo a uma necessidade lógica, teorética, mas a uma necessidade ética. O lugar onde cada um está é único, irreproduzível, irrepetível, de onde apenas eu vejo o mundo, de onde apenas eu vejo os outros; nesse lugar eu necessito pensar. Ninguém fará isso por mim. Estou num lugar em que só eu posso pensar aquilo que eu penso. Um lugar singular. Há uma perspectiva ética abstrata, mas ela só funciona se se der num lugar singular, num lugar que você ocupa, que é só seu. O ato de você pensar, só você pode fazer e mais ninguém.  O seu lugar não pode ser ocupado por outra pessoa. Bakhtin diz "Somente o ato de pensar pode ser ético, pois é nele que o sujeito é convocado. O ato de pensar como, se fosse um discurso interior, depois vai se exteriorizar. Não é algo que eu faço de forma fortuita. Eu sou obrigado a fazer. Quem me convoca a fazer é o outro. Não sou eu que me convoco. Nessa relação de alteridade eu preciso ser ético. Só o ato de pensar pode ser ético, pode exercer essa obrigação, essa ação responsável. Ação responsável é o ato de pensar com o qual instauro a alternidade, a constituição de um outro diferente de mim. O ato de pensar é um ato responsável. Eu devo responder por ele. O sujeito que pensa assume que pensa assim ante o outro. Não é para mim que eu penso; penso em face do outro. Qualquer ação ou ato de pensar é um ato responsável e é um ato de responder- respondibilidade  e responsabilidade.
      O ato de pensar é um gesto ético no qual nos revelamos por inteiro. Não dá para nos esconder, aos pedaços. É um arriscamento por inteiro, segundo Bakhtin. Ele ainda diz que não temos álibis para não pensar, para não responder, para não tomar posição. A sua existência já é um ato ético. Ele nos provoca para que façamos um "arriscamento". Há uma "necessitação" de se arriscar. 
      O pensamento universal, que nos colocaria numa perspectiva do ato universal do pensamento abstrato, apenas é reconhecido quando ele existe de forma única para mim.
      A coisa em si existe como objeto. A coisa existe em mim como sujeito, se coloco no objeto minha visão, meu ponto de vista, meu olhar, se assino aquele objeto. Essas ações humanizam o objeto, já dizia Marx.  Objeto que singulariza como humanizado me humaniza e humaniza outros em troca. O humano humanizando o mundo. Aplicando a ele minha assinatura responsável. Eu atribuo valores a ele e o mundo humanizado me constituindo de volta.
      A medida que me relaciono com esse universal individualizado, o mundo começa a existir. As coisas existem porque eticamente atribuo a elas o meu ponto de vista. O objeto ganha existência nessa relação, nesse jogo social.
      Eu não penso sozinho, logo todo pensamento é social. A individualidade, o que penso, aquilo que atribuo, o valor, é social. Esse social somos nós. Hoje essas relações que existem entre o ato de pensar e o produto estão rompidas.
      A gente é atraído por uma série de contravalores que impedem que a gente viva aquilo que até admite como valor. 
      Eu não dou conta de ser um sujeito unicista, unitário. Há uma divisão entre o sujeito e o pensamento. Existe uma crise laica de viver responsável.
      Eu sou impossibilitado de não dizer; mas eu disfarço, crio vários disfarces. As pessoas tentam criar álibis, tentam se esconder.
      O ato de pensar responsável é um movimento da consciência.
      A Sociedade vai mudando, eu a faço mudar, eu a mudo novamente; é um movimento.
      Precisamos ter a possibilidade e a oportunidade de transformar esses atos responsáveis em possibilidades de realidade.
      Há uma crise do "necessitamento" de pensar. Vivemos numa sociedade em que as pessoas se calam. " Os outros" falam, a gente ouve.
      Se há uma crise da necessidade de pensar, precismos nos opor a esse jogo que quer fazer as pessoas pararem de pensar, de tomar posição, se serrem responsáveis e assinarem os seus atos.
      Há uma crise da ausência do outro. Somente do lugar onde estou é possível ver o outro. Para o outro, o outro sou eu. Precisamos instaurar o outro. Exigir o outro. Preciso do outro para  que eu tenha o meu lugar. Eu preciso que você tenha o seu. Devo exigir o outro como diferente.
      Essa crise da ausência do outro precisa ser resolvida, e preciso do outro diferente. Eu não tenho que me esforçar para construir o outro igual.
      Preciso da existência do outro postado diante de mim. É ele que garante a minha própria existência. Tudo é resultado da relação. O jogo ético é um jogo relacional. O outro no seu lugar individual e eu no meu lugar que é só meu: a interação. Essa relação completa os integrantes.
      Podemos produzir imposturas através do egoísmo. Querer tudo só pra mim. Achar que vou me construir a mim mesmo. Achar que meu pensamento, meu jeito, meu lugar ético é o padrão para todos.
      O tecnicismo e o pragmatismo produzem um apagamento da vida, do meu jeito de ser, do meu singular.
      Outra impostura do ato ético é o apagamento do sujeito. Você precisa pensar sobre o mundo, dar sentido a ele e ele se relacionar contigo.
      Precisamos transformar os objetos em si, em objetos para mim, transformando-os em signos.
      Devemos pegar os objetos materiais do mundo. Os pensamentos são materiais. Construir um mundo materialista. Devemos pegar a materialidade-histórica, o viver da sociedade, os sentidos e as visões que vêm pela história. E finalmente pegar o meu  ponto de vista, o jeito como eu vejo o mundo e pregar naquele objeto.
      Os objetos do mundo têm toda a história que foi sendo construída sobre eles, mas têm o ponto de vista das pessoas. ESSE É O ATO DE PENSAR. 
      Os olhares são diversos, e é isso que constituem os objetos do mundo. AÍ É QUE ESTÁ NOSSO ATO RESPONSÁVEL: OLHAR PARA O MUNDO E DIZER COMO VOCÊ O VÊ.
      Nós fazemos isso pela linguagem. Nós pronunciamos a vida segundo Bakhtin. Não são palavras, é posicionamento, é jeito de olhar o mundo. Do meu lugar único eu atribuo valor a algo. Meu jeito de olhar, minha enunciação, palavras que uso, são signos carregados de ideologia, com minhas ideias, com minha assinatura. ISSO É A MINHA ÉTICA APARECENDO NO MEU DISCURSO.
      O meu discurso leva o jeito como olho o mundo. O ato de pensar é dito e usará signos, gestos, comportamentos, expressões...
      Discursar é postar-se diante do outro e me anunciar mostrando como vejo o mundo e cobrando do outro que diga também. Esse é um JOGO ÉTICO. Essa é a relação que discursivamente nos constrói.
      A minha consciência, eu mesmo, não é resultado da gratuidade. O outro faz surgir o eu dentro de mim pela interação semi-ótica, fala, diálogo.  
      Precisamos ser sujeitos falantes. Construir textos dizendo quem somos e como vemos.
      O DISCURSO É MEDIAÇÃO. O que está no meio do eu e do você, do outro e do eu, é a linguagem.
      Quando a linguagem passa entre um e outro, a gente está passando, não palavras, mas é eu mesmo. O discurso é ponte. É o lugar do encontro ético entre mim e o outro. A alteridade é que vai eticamente nos construir.
      Saberei quem sou me vendo nos seus olhos, porque nos meus quem está é você.
     Os compromissos então que podemos levantar é não fugir do pensar. Insistir na construção da minha identidade e do outro. É  alargar mais o valor do cotidiano, daquele gesto único que só você  pode fazer, daquele acontecimento no mundo que só você é o protagonista. É garantir a enunciação ética no cotidiano; que ao lado da razão, do elemento racional, teorético, a gente paute a vida, esse lugar ético da existência. O discurso sobre a ética e ética sobre o discurso com um viver de paixão. Razão e paixão. Isso vai instaurando cadeias de gostar da vida, séries intermináveis de comunicações sobre gostar da vida em que nos animaremos. Assim viver vai ser um acontecimento mais leve e prazeroso.
      Certamente gostaremos mais de estar com o outro, ver e assimilar a diferença, sonhar com o outro sonhos do futuro, construir um mundo diferente, responder e ser responsável por nós mesmos e pelo outro.

 (Texto produzido a partir da leitura do livro de Valdemir Miotello)

      
      

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